Trabant: clássico carro socialista criou problema ambiental, resiste até hoje e no Brasil é raridade

Autoesporte esteve em uma antiga cidade da Alemanha Oriental para conhecer o veículo com carroceria de plástico e que precisou até da criação de uma bactéria para ser reciclado Vários capítulos da história se cruzam na gelada Leipzig, no leste da Alemanha. Uma área de 132 hectares que já foi base militar por décadas, e ainda abriga alguns antigos bunkers camuflados em meio à vegetação, hoje tem a fábrica mais moderna da Porsche no mundo. E, nas estradas da cidade, é possível ver lado a lado, em pleno 2023, um tecnológico Porsche Taycan e um Trabant, carro símbolo da antiga Alemanha Oriental, que tinha Leipzig como uma das cidades mais importantes.
O Trabant tem carroceria de um tipo de plástico semelhante à fibra de vidro, chamado de Duroplast, que era feito com restos de algodão, retalhos de panos e outros materiais vindos da União Soviética. O fumacento motor dois tempos, refrigerado a ar, era de no máximo 594 cc rendia até 26 cv.
Trabant foi símbolo da Alemanha Oriental entre 1957 e 1991
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O carro representou a Alemanha do regime socialista e criou uma legião de fãs mundo a fora, mas teve um final não muito feliz. Vários donos jogaram seus carros no lixo (literalmente) após a reunificação do país, e o Trabant virou um problema ambiental ao ponto de desenvolverem uma bactéria para resolver.
Para muitos, o carro é um ícone da indústria e a “engenharia da simplicidade”. Para outros, é o pior carro de todos os tempos. Fato é que a frota do polêmico Trabant volta a crescer na Alemanha nos últimos anos. Em Leipzig, me deparei com algumas empresas de turismo que alugam o carro para as pessoas fazerem um tour dirigindo pela cidade para “sentir a história viva”. Isso também acontece em Berlim. A duração do passeio é de 75 minutos e o preço médio é de 69 euros por pessoa, cerca de R$ 370 na conversão direta atual.
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Esses modelos são cobiçados inclusive por colecionadores no Brasil, mas por aqui eles são raros. Ou melhor, raríssimos! Porém, é preciso voltar no tempo para um dos períodos mais turbulentos da história da humanidade e entender o que é o Trabant.
Sem dúvida, Leipzig é o palco de um dos maiores choques culturais automobilísticos do mundo, vivendo com passado, presente e futuro de forma simultânea.
Era uma vez!
Trabant foi fabricado em Zwickau, local da primeira fábruca da Audi
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A história do Trabant se cruza com a da Audi. Sua fábrica ficava em Zwickau, cidade 80 km ao sul de Leipzig. Ela foi fundada pelo engenheiro August Horch, em 1904, e virou o primeiro complexo fabril da Audi, em 1910. Na década de 1930, as marcas Horch, Audi, DKW e Wanderer formavam a Auto Union, que produzia automóveis e motos.
A fábrica foi praticamente destruída na Segunda Guerra Mundial e os soviéticos tomaram conta do local em 1946, um ano após o fim da guerra. Após a reconstrução, ela foi reaberta pela empresa VEB Sachsenring em 7 de novembro de 1957, lançando o primeiro Trabant, o P50, com motor de 500 cc e 18 cv.
Nessa época, durante a Guerra Fria, a Alemanha era divida. E a cidade Zwickau ficou do lado da República Democrática Alemã (DDR), chamada popularmente de Alemanha Oriental,. Este era o “Estado socialista”, enquanto a Alemanha Ocidental era o “Estado capitalista”.
A sigla para República Democrática Alemã em alemão é DDR e ela era estampada na traseira dos carros
Trabant
O Trabant, portanto, era fabricado de uma forma muito simples e básica, pois aquela parte do país não tinha muitos recursos. O aquecimento da cabine, por exemplo, era feito por um sistema que trazia o ar quente do motor direto para dentro do carro. Sua estrutura era de aço. Porém, como já mencionado, a carroceria era de Duroplast. A Alemanha Oriental era um país satélite da União Soviética, e por lá regularmente havia escassez de aço e pouca ou nenhuma reserva de ferro.
E o Duroplast foi a solução encontrada pelo engenheiro Wolfgang Barthel justamente para o país não importar aço. Os restos de algodão, retalhos de panos e outros tecidos eram colocados numa prensa formando essa espécie de resina plástica. O Trabi, como também é chamado, era levíssimo: pesava pouco mais de 600 kg. E a mecânica era simples: não tinha comando de válvulas, radiador, bomba d’água ou bomba de óleo. O lubrificante se misturava com a gasolina que chegava ao carburador pela força da gravidade. O tanque tinha 24 litros e o consumo até que era bom: 14 km/l, em média.
Trabant também era bem simples por dentro e havia poucos comandos
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Em relação ao desempenho, os Trabant de 26 cv tinham câmbio manual de quatro marchas, alcançavam velocidade máxima de 100 km/h e demoravam cerca de 20 segundos para acelerar de 0 a 80 km/h.
Mas o carro tinha dois problemas: o material não era reciclável e era altamente poluente. É estimado que os Trabants emitiam quatro vezes mais gases poluentes do que os carros europeus da época. Esse excesso de fumaça era produzido justamente por causa da queima da mistura de óleo dois tempos com a gasolina.
O carro foi produzido em dois modelos principais, o P50, também conhecido como Trabant 500, entre 1957 e 1963, e depois o P60, produzido entre 1963 e 1991. As séries 500 e 600 tiveram alguns modelos e carrocerias de sedãs e peruas, sempre com a mesma mecânica. O comprimento dos carros não ultrapassa os 3,40 m.
A Feira de Leipzig era muito tradicional naquela época e vários Trabant eram apresentados lá
Trabant Club
Mas comprar um Trabant era uma missão bem difícil. Tinha gente que ficava 15 anos na espera por conta da escassez de materiais e da mão de obra era puramente manual. Para receber seu carro, a pessoa tinha que pagar um valor de sinal e parcelar todo o restante ao longo dos anos. No regime socialista esse era o único modo de alguém ter um carro, já que não existia outra opção. Havia também outra fabricante, a Wartburg, entretanto, o volume era muito menor do que dos Trabant.
Leipzig sempre foi um importante centro para os Trabant. A Feira de Leipzig, muito tradicional naquela época, era palco de apresentações de alguns modelos da marca, como o primeiro Trabi lançado, o P50, que foi mostrado para o público no evento em 1958. E o último Trabant a entrar em produção também foi apresentando na cidade, o P601.
Fim trágico!
Muitos Trabant foram parar nos lixões após a reunificação do país
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Após 34 anos de existência, e pouco mais de 3 milhões de unidades vendidas, o último Trabant saiu de linha no dia 30 de abril de 1991, quando a VEB Sachsenring encerrou sua produção após a unificação da Alemanha com a queda do Muro de Berlim.
Se no lado Oriental havia a Trabant, o lado Ocidental tinha BMW, Porsche, Audi, Mercedes e Volkswagen, por exemplo. O choque cultural foi tão forte que muitos donos até acabaram jogando seus Trabant nas latas de lixos para comprar carros mais modernos.
Uma empresa criou uma bactéria para comer a carroceria do carro
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Os ferros-velhos do país começaram a lotar de Trabant e o fato do carro não ser reciclável começou a causar sérios problemas ambientais. Várias lendas cercam o destino que os Trabi levaram. Entre elas, dizem que algumas carrocerias foram trituradas para virar ração de porcos, ovelhas e outros animais de fazenda, como retrata um filme sérvio chamado “Black Cat, White Cat” (Gato preto, Gato branco).
Comprovadamente, só havia um método para decompor um Trabant: criar de uma bactéria. Uma empresa de biotecnologia de Berlim desenvolveu na década de 1990 uma forma de vida que se alimentava da carroceria de Duroplast em vinte dias. Assim, o país conseguiu se desfazer de milhares de unidades no decorrer dos anos.
A volta do Trabant
Trabant hoje são atração turística em Leipzig
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De acordo com a Autoridade Federal de Transporte Motorizado da Alemanha (KBA), a frota de Trabant da antiga Alemanha Oriental está crescendo. A região da Saxônia, que tem Leipzig como maior cidade, abriga 10.070 dos 39.342 Trabi registrados na Alemanha em 2023. Em 2010, a KBA contabilizou cerca de 34.800 carros, ou seja, 11,5% a menos.
A janela do quarto do hotel que eu estava em Leipzig era virada para a rua. Nas calçadas, tinha um movimento grande de pedestres e torcedores do time do local, o Red Bull Leipzig. Naquela quarta-feira, a equipe enfrentaria o Estrela Vermelha de Belgrado (Sérvia), pela Champions League — foi 3 a 1 para o time da casa. No asfalto, o fluxo era intenso, com a circulação de muitos carros da Tesla. Mas a maioria era de fabricantes alemãs. Não vi nenhum Trabant.
Algumas empresas fazem passeios pela cidade de Trabant
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Entretanto, não é preciso ir muito longe do hotel para ver um Trabant. Uma das empresas que faz aluguel deles fica lá perto, a Trabi Erleben.
“O Trabant virou um clássico, provavelmente também devido à falta de alternativas da época. Hoje, os Trabi dificilmente são vistos nas estradas, mas você acha. Quando vamos em passeios turísticos ou eventos com dez, vinte ou trinta Trabants, somos sempre uma atração. Como o Trabi tem um “rosto amigo”, as pessoas associam muitas experiências e histórias a ele”, conta à Autoesporte Karen Ulber, diretora da empresa.
Segundo ela, muitos Trabant passam por gerações em algumas famílias, onde os avós ou pais querem mostrar aos filhos e netos como os carros eram naquela época. “Muitos se perderam no tempo, outros foram restaurados e alguns estão por ai. Trabant é a história que você pode tocar”, diz.
Trabant virou símbolo da cidade de Leipzig
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Leipzig também é conhecida como a “Cidade Herói de 1989” e desempenhou um papel importante na história da Alemanha. A região é diretamente associada com os protestos pelo fim da RDA e ao início da reunificação. E, para muitos ali, apesar de problemas históricos da época, o Trabant é como uma ponte entre passado e presente.
A cidade do leste alemão mantém forte suas raízes históricas, mas se modernizou após a reunificação e tem um papel bem importante para a indústria automobilística. A fábrica da Porsche começou a ser construída em 2000 e iniciou as operações em 2002, com a produção do carro que mudou sua história recente, o Cayenne. Em 2017 o SUV teve sua produção transferida para Bratislava, na Eslováquia, para dar mais espaço ao Macan.
Fábrica da Porsche em Leipzig produz o Macan e o Panamera
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A Porsche produz em Leipzig o Panamera, incluindo o híbrido, e o Macan. E, no final deste ano, a versão elétrica do SUV — que é o carro mais vendido da marca no mundo — também será feita lá. Portanto, motor a combustão, híbrido e elétrico feitos no mesmo lugar pela primeira vez na história da fabricante.
Em 2005, cinco anos após a Porsche chegar na cidade, a BMW também inaugurou sua fábrica em Leipzig. Atualmente, os bávaros produzem por lá o Série 1, Série 2 Gran Coupé, Série 2 Active Tourer e o Mini Countryman.
Menos de dez no Brasil!
Existem menos de 10 Trabant no Brasil
Arquivo pessoal
Se na Alemanha a frota de Trabi chega a quase a 40 mil, no Brasil o cenário é muito diferente. Você conta nos dedos.
“Minha história com o Trabant começou no início dos anos 2000 porque eu sempre fui fã de DKW. Nessa época um amigo polonês me contou que o seu pai trabalhou, entre outras coisas, como mecânico na Alemanha Oriental e me perguntou se eu tinha interesse em ter um Trabant, mas eu nem sabia o que era isso. Quando ele me falou que era um carro com motor dois tempos e a fabricação feita na antiga fábrica da DKW eu me interessei”, conta Paulo, um colecionador de carros antigos à Autoesporte.
Ele achou a história do carro interessante e o pai do seu amigo encontrou um Trabant 601 de 1971 na Alemanha, que precisava ser restaurado antes de vir para o Brasil. E nesse tempo, o brasileiro ficou sabendo de uma feira anual em Zwickau que se chama Internationale Trabant Fahrer Treffen (Encontro Internacional de Motoristas Trabant), e foi conhecer.
Paul tem três Trabant na sua coleção
Arquivo pessoal
“Tinha quatro quilômetros e meio de exposições e a feira acontecia de sexta às 12h até domingo às12h, sem parar. Então hvia muita gente vendendo peças e tudo relacionado ao carro. E ali fui garimpando coisas para restaurar o carro”, explica.
Desde então, Paulo foi importando outros Trabant para ao Brasil. Atualmente, está com três na sua coleção, que também tem outros carros, principalmente alemães. Segundo ele, no Brasil tem menos de dez Trabant poorque ele sabe quem são todos os donos.
O último capítulo do Trabant?
Trabant virou um problema devido às fortes emissões de poluentes
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As leis de emissões de poluentes estão cada vez mais rigorosas, principalmente na Europa. E os Trabant vão na contramão da eficiência energética. A associação ambiental DUH, que em português pode ser traduzida como Ajuda Ambiental Alemã, pediu a proibição dos Trabant com foco principal na região da Saxônia. A DUH é membro do Gabinete Europeu do Meio Ambiente, uma instituição com cerca de 180 organizações ambientais de 40 países.
“Não faz mais sentido um carro tão poluente circular pelo país. As pessoas têm direito ao ar puro. As emissões dos veículos com motores a dois tempos, em particular, são imediatamente perceptíveis com uma cortina de fumaça quando passam à frente de você. A única solução para manter esses carros em atividade seria torná-los elétricos”, ressaltou Dorothee Saar, membro da DUH, ao jornal alemão Blind em agosto ao entrar com uma ação contra a circulação dos Trabi.
Só na região da Saxônia existem mais de 10 mil Trabant
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Na época, o Trabant Club emitiu uma nota de repúdio e disse que os carros com Matrícula H — com certificado de colecionador e mais de 30 anos de fabricação — circulam muito menos do que os carros de uso diário do país, além de serem patrimônio histórico e cultural da Alemanha. Enquanto os clássicos andam cerca de 1.000 km por ano, em média, os outros circulam muito mais do que isso por mês, de acordo com eles.
Será a última página do livro do Trabant? Essa polêmica ainda deve ir longe, mas é inevitável que algo seja feito em prol do meio ambiente. Enquanto isso, passado, presente e futuro do universo automobilístico continuam se cruzando e gerando muitas reflexões históricas pelas ruas de Leipzig, que consegue viver em dois mundos no mesmo lugar sem ter um muro para dividir os lados.
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