Gurgel BR-800: o choque de realidade no sonho do carro popular nacional

Dirigimos o modelo idealizado por João Augusto Amaral Gurgel e que foi produzido entre 1988 e 1991 Dos dez maiores mercados automotivos no mundo em 2023, só o Brasil e o Canadá não possuem uma marca de carros nacional. O país norte-americano até tem a desculpa de ser vizinho dos Estados Unidos. Talvez nunca tenha precisado. Mas nós, brasileiros, sempre caímos na inevitável pergunta: por que nenhuma marca automobilística daqui vingou e se tornou potência mundial, como várias empresas estrangeiras do setor? O empresário João Augusto Amaral Gurgel parecia estar à frente dessa questão e acenava com uma solução já em 1949, quando o ramo dos automóveis ainda engatinhava por aqui.
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Gurgel BR-800 1989 tem medidas compactas e é 45 cm menor do que um Fiat Uno em comprimento
Murilo Góes/Autoesporte
Na época, Amaral Gurgel propôs um automóvel popular nacional chamado Tião como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) para se formar em Engenharia Mecânica na Escola Politécnica de São Paulo (SP). Quase foi reprovado, pois seu professor pedira o projeto de um guindaste, não de um carro. Ele acabou conseguindo o diploma e, 20 anos depois, fundou a Gurgel Motores. Começou a produzir buggies e jipes off-road com mecânica Volkswagen, mas nunca deixou a ideia do carro popular nacional sair de sua cabeça.
Nos anos 1980, já com uma fábrica própria em Rio Claro (SP) e boa reputação na produção de veículos 4×4, Amaral Gurgel resolveu investir no projeto que havia bolado na faculdade. Surgia o Cena (abreviatura para Carro Econômico Nacional), projeto do qual nasceria o primeiro carro de passeio genuinamente brasileiro: o Gurgel BR-800.
Ajustar o retrovisor do Gurgel BR-800 1989? Só com as mãos para fora, como os maias e astecas faziam
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Com dimensões extremamente compactas mesmo para os padrões da época — seu comprimento, abaixo de 3,20 metros, era 45 centímetros menor que o de um Fiat Uno —, o BR-800 trazia soluções inventivas para custar o mais barato possível. Em vez de chassi monobloco, tinha estrutura tubular de aço com carroceria formada por painéis de plasteel, um composto de fibras de vidro, de plástico e de aço patenteado pela própria Gurgel. A suspensão dianteira, do tipo Springshock, trazia as molas helicoidais embutidas nos amortecedores; já a traseira era por eixo rígido e molas semielípticas.
O motor tinha dois cilindros opostos. Era carburado e refrigerado a água, mas trocava o distribuidor mecânico por bobinas com controle eletrônico, além de embutir o alternador no virabrequim. Muita gente afirma que era um Volkswagen boxer de quatro cilindros cortado ao meio, mas isso é lenda. Era um propulsor da própria Gurgel, chamado Enertron.
O câmbio, este sim, vinha herdado do Chevrolet Chevette e era manual de quatro marchas. Com uma relação demasiado longa, fazia o bicilíndrico de apenas 33 cv de potência e 6,2 kgfm de torque demorar a ganhar embalo. As acelerações lentas eram alvo de críticas.
Propulsor do Gurgel BR-800 1989 era um produto patenteado pela própria Gurgel, e se chamava Enertron
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Autoesporte rodou com um Gurgel BR-800 de José Antonio Nascimento, do Gurgel Clube e Cia., a quem agradecemos a cortesia. Sua unidade, ano 1989, é uma das 6.110 fabricadas entre 1988 e 1991, período de produção do modelo. Foi adquirida em 2004, com menos de 40 mil km rodados; hoje, acumula mais de 290 mil km. Não é um carro de coleção, portanto. José Antonio já viajou a bordo do modelo para o Rio de Janeiro, Espírito Santo e Santa Catarina, e também o utiliza no dia a dia e para fazer trilhas.
Gurgel: o sonho de um fabricante brasileiro de automóveis se tornou realidade há 50 anos
Em nossa experimentação, percebemos como o Gurgel é valente, graças à tração traseira, aos ângulos generosos e à suspensão traseira de “caminhão”. Herda muito da robustez dos jipes clássicos da marca, como o X-10 e o X-12. Por ter menos de 650 kg de peso, é fácil manobrá-lo, mesmo sem assistência de direção. E o consumo pode chegar facilmente a 25 km/l de gasolina se o dono souber dosar o pé.
Se havia tantas qualidades, o que deu errado? A resposta é complexa. Primeiro, o projeto tinha limitações. Além do desempenho acanhado, a ousada suspensão dianteira oferecia pouco curso. O alternador acoplado ao motor esquentava demais. Os vidros corrediços para os lados tornavam difícil a entrada de ar na cabine e não havia abertura externa para o porta-malas!
Gurgel BR-800 1989: tampa traseira dá acesso apenas ao estepe do carro e o porta-malas não abre por fora
Murilo Góes/Autoesporte
Ao longo dos anos, a Gurgel foi corrigindo alguns problemas. A unidade de José Antonio, por exemplo, já vinha com um alternador convencional. Outras mais recentes tinham vidro traseiro basculante para acesso ao bagageiro e suspensão dianteira com molas e amortecedores independentes.
Comprar um BR-800 só era possível tornando-se sócio da Gurgel. Pagava-se US$ 3 mil pelo carro mais US$ 1,5 mil em ações (o valor, corrigido, passa de R$ 385 mil hoje). Em seus primeiros anos, o modelo recebeu um generoso incentivo de IPI: 5%, contra 25% de outros populares da época.
Gurgel BR-800 é equipado com câmbio automático de quatro marchas e herdou robustez dos jipes da marca; mesmo assim, pesa menos de 1 tonelada
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Então veio o governo Collor e a famosa abertura de mercado, incluindo um novo sistema de tributação com IPI reduzido para carros 1.0. De supetão, o Gurgel ficou defasado e caro. Esvaíram-se ainda mais as vendas — a empresa jamais se recuperou e faliu em 1996. E o sonho do carro popular nacional se tornou lenda, tão exótica quanto o próprio BR-800.
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Visual quadradinho e interior espartano são características do Gurgel BR-800
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Gurgel BR-800 1989
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